Azim Khamisa ficou devastado quando perdeu o filho de forma trágica, morto em uma tentativa de assalto por um jovem de apenas 14 anos, membro de uma gangue nos EUA.
Após a perda do filho, ele iniciou uma campanha educativa contra a violência armada, junto a um aliado improvável: Ples Felix, o avô do assassino.
Mais de 20 anos depois, os dois são hoje melhores amigos.
Em entrevista ao programa de rádio Outlook, do serviço mundial da BBC, Azim e Ples contam como a tragédia deu origem a essa amizade.
Aos 20 anos, Tarik Khamisa era aluno da Universidade Estadual de San Diego, na Califórnia, e trabalhava como entregador de pizza às sextas e sábados.
“Ele era uma grande alma, eu diria um espírito antigo em um corpo jovem. Abençoado com um grande senso de humor, era uma alegria estar perto dele. Ele tinha a habilidade de descontrair qualquer situação com uma piada”, recorda o pai.
Na noite de 21 de janeiro de 1995, ele saiu para entregar uma pizza em um bairro de classe média da cidade. Mas não podia imaginar que havia sido atraído para um endereço falso por uma gangue juvenil.
Tariq era estudante universitário e trabalhava como entregador de pizza — Foto: Tariq Khamisa Foundation/BBC
“Deram o endereço certo, mas o número do apartamento errado. Ele bateu em várias portas tentando descobrir quem tinha pedido a pizza, mas claro que ninguém tinha pedido”, conta Azim.
Quando voltou para o carro, Tarik foi abordado por um grupo de quatro jovens: três de 14 anos e um de 18. Era uma tentativa de assalto, mas ele se recusou a entregar as pizzas.
O mais velho, apontado como o líder da gangue, entregou então uma arma a um dos menores, no que seria parte de um ritual de iniciação, e pediu que atirasse.
“Quando meu filho estava tentando dar ré com o carro, o jovem de 14 anos puxou o gatilho. Foi uma única bala, que entrou pela janela do motorista e acertou meu filho.”
“Tariq morreu alguns minutos depois, afogado em seu próprio sangue por causa de uma mísera pizza, aos 20 anos”, diz o pai.
Infância conturbada
O menor de idade que matou Tariq foi identificado como Tony Hicks. Ele morava com o avô, Ples Felix, a quem considera até hoje como pai.
“(Tony) foi criado como filho de uma menina de 14 anos, minha filha. E sempre foi o tipo de criança que era levada de um lado para o outro, ora estava na casa da minha mãe, ora na casa da avó, e sempre tinha um monte de gente lá. Os primos da minha filha eram todos envolvidos com gangues”, conta Ples.
Quando o primo favorito de Tony foi brutalmente assassinado por uma gangue rival, a família decidiu que o menino, com sete anos na época, deveria sair de Los Angeles e ir morar com o avô em San Diego.
“Ele era um garoto traumatizado, precisando de toda ajuda e apoio que nunca havia tido. E eu realmente não estava em condições de dar toda a ajuda que ele precisava, mas com certeza eu tentei”, diz.
Más companhias
Apesar da dificuldade de se adaptar a San Diego, Tony se esforçava para ser um bom aluno na escola e corresponder às expectativas do avô. Mas, à medida que foi crescendo, as amizades começaram a ter uma influência cada vez mais forte sobre ele.
Até que, no dia do crime, Tony fugiu de casa.
“Tony era um caso clássico de juventude transviada por andar com pessoas que ele pensava que eram seus amigos.”
“(Os colegas) o levaram até um rapaz de 18 anos que ofereceu álcool e drogas a eles. E depois de consumirem álcool e drogas, esse rapaz convidou Tony e outros dois meninos de 14 anos para participarem de um assalto a um entregador de pizza”, revela.
Ples estava assistindo ao telejornal quando viu a notícia do assassinato.
“Um sentimento muito ruim tomou conta de mim naquele momento, porque era a primeira vez que Tony não estava na cama àquela hora da noite. E eu sabia que ele estava pelas ruas em algum lugar.”
Até então, Ples não tinha feito nenhuma conexão entre Tony e a morte de Tariq. Só ficou sabendo do envolvimento do neto quando recebeu um telefonema da polícia avisando que ele tinha sido preso como principal suspeito do crime.
Azim Khamisa também recebeu a notícia da morte do filho pelo telefone.
“Perdi a força em ambas as pernas, desabei no chão, todo encolhido, bati a cabeça na geladeira. Não tenho palavras para descrever o quão insuportavelmente dolorosa essa experiência foi para mim.”
“Foi literalmente como uma bomba nuclear que detonou dentro do meu coração”, descreve Azim.
De quem é a culpa?
Em um discurso emocionado, Tony confessou no tribunal ter matado Tariq. E pediu perdão à família Khamisa. Após se declarar culpado, foi condenado a 25 anos de prisão.
“Essa audiência aconteceu dois anos e meio depois (do crime). Obviamente é fácil ver que meu filho foi vítima de um jovem de 14 anos. Mas eu também vi que o jovem de 14 anos foi vítima da sociedade”, afirma Azim.
“Quer dizer, quem é o inimigo aqui? É o jovem 14 anos ou é a sociedade que força muitos jovens, especialmente jovens com um histórico como o de Tony, que foram negligenciados, a escolher uma vida de gangues, drogas, álcool e armas?”
Com isso em mente, nove meses após a morte do filho, Azim fundou a Tariq Khamisa Foundation, uma organização educacional com a missão de “impedir que crianças matem crianças, quebrando o ciclo da violência juvenil”.
“Decidi honrar a memória do meu filho. Minha família e eu lidamos com essa tragédia muito negativa em nossas vidas de uma forma positiva”, diz ele.
“A Tariq Khamisa Foundation ensina essencialmente os princípios da não violência, responsabilidade, empatia, compaixão e perdão. E o mais importante, a construção da paz”, explica Azim.
O início da amizade
Mas como nasceu a amizade entre Ples e Azim?
“Meu foco na meditação e oração sempre foi conseguir uma chance de me encontrar com a família de Tariq. E soube pelo advogado de Tony que Azim gostaria de se encontrar comigo”, relembra Ples.
“Eu queria manifestar meu apoio, expressar minhas condolências, e foi realmente algo especial.”
Durante o encontro, Azim contou sobre a fundação que tinha criado. E convidou Ples para participar de uma reunião em sua casa, junto com sua família, para discutir a iniciativa.
A recepção foi mais calorosa do que ele podia imaginar dadas as circunstâncias. E foi só o começo.
Ples se tornou membro do conselho da Tariq Khamisa Foundation. E hoje os dois dão palestras para jovens sobre formas de acabar com a violência armada.
“Quando vamos às escolas, somos apresentados como ‘o neto deste homem matou o filho deste homem, e eles estão aqui no espírito de compaixão, perdão e fraternidade’. E isso é algo que as crianças normalmente não vivenciam, porque o que elas basicamente veem em nossa cultura é que a violência gera mais violência”, diz Azim.
Cara a cara com o assassino do filho
Já o encontro de Azim com Tony só viria a acontecer alguns anos depois.
“Eu só conheci o Tony cinco anos depois da morte de Tarik, pois não sabia como reagiria. Mas sabia que, para completar minha jornada de perdão, em algum momento teria que ficar cara a cara com ele”, conta Azim.
Os dois conversaram por uma hora e meia.
“Olhei nos olhos dele tentando encontrar um assassino, mas não consegui (encontrar). Não esperava isso.”
A Justiça americana concedeu liberdade condicional a Tony em novembro de 2018, quase 24 anos após o crime. Ele foi solto em abril de 2019.
Parceria além do trabalho
O fato é que a amizade de Azim e Ples vai muito além do trabalho.
“Ples e eu somos solteiros e saímos para jantar com frequência, ambos gostamos de comida apimentada. Por isso, sempre pedimos tabasco para acompanhar nossos pratos”, diz Azim.
Ples complementa: “Azim me ajudou a perceber o equilíbrio dos sabores, o valor de um vinho para complementar uma refeição. Agora tenho um apreço notável por vinho.”
Segundo Azim, a cumplicidade entre os dois é evidente. “Quando estamos juntos numa palestra, em que somos apresentados como ‘o neto deste homem matou o filho deste aqui’, mesmo se não dissermos uma palavra, é possível sentir o amor, o respeito e a confiança que temos um no outro.”