Imagine um conhecido político, líder de seu partido, em meio a um frenesi de jornalistas e sendo questionado por alguém que tem um forte sotaque.
Ele olha para a repórter, como se não tivesse entendido nada, e diz zombando dela: “Desculpe, não entendi uma palavra. Alguém pode me fazer uma pergunta em português adequado?” Chocante, certo?
Foi o que aconteceu na França, em uma cena registrada entre Jean-Luc Mélenchon e uma repórter da TV regional francesa. A ofensa cometida por ela? Ter um forte sotaque do sul do país.
Ai de qualquer pessoa com uma pitada do sul em sua voz que queria crescer em sua carreira na radiodifusão ou na política nacional, na academia e no serviço público.
Fale como um parisiense
Se quer se comunicar na França (e não apenas provocar risos), então, você se conforma com isso e fala como em Paris. Existem muitas aulas online para ensinar como.
Mas os tempos estão mudando e, pela primeira vez, uma medida está sendo tomada em prol dos 30 milhões de cidadãos franceses que falam com sotaque regional. Isso é quase metade da população do país, de 67 milhões.
Um projeto de lei foi aprovado na quinta-feira (26) na Assembleia Nacional, que é equivalente no Parlamento francês à Câmara dos Deputados do Congresso brasileiro, para tornar crime discriminar um indivíduo com base no sotaque.
“Eu também já corrigi ao longo do tempo meu sotaque, primeiro ao entrar na Sciences-Po (universidade), depois ao me tornar advogada. Então, conheço este assunto pessoalmente”, disse a parlamentar Laetitia Avi, que propôs a lei.
A criminalização da glotofobia, nome dado a este tipo de discriminação, que agora foi equiparado a outros tipos de discriminação já previstos em lei, como por raça, gênero ou deficiência física, teve 98 votos a favor e 3 contra.
A pena prevista é de três anos de prisão e multa de 45 mil euros (cerca de R$ 285 mil).
O projeto deverá ainda ser votado pelo Senado nas próximas semanas. Se aprovado, seguirá para promulgação.
Sotaque pode prejudicar a carreira
“Ter um sotaque regional na França significa automaticamente que você é tratado como um caipira, amável, mas fundamentalmente pouco sério”, disse o deputado Christophe Euzet, que é de Perpignan, na Catalunha francesa.
“É inimaginável na França que você possa ter alguém com sotaque sulista ou mesmo do norte, por sinal, como comentarista no Dia do Armistício ou falando sobre política do Oriente Médio”, disse Euzet. “É um problema pessoal para muitas pessoas que descobrem que precisam abrir mão de parte de sua identidade se quiserem progredir em suas carreiras.”
Isso também remete a uma questão política, argumentou Euzet. “O movimento dos coletes amarelos foi um exemplo clássico do que acontece quando milhões de pessoas olham para seus representantes em Paris e sentem que não têm nada em comum com eles.”
Mas espere um minuto. O primeiro-ministro da França, Jean Castex, não é famoso por ser o primeiro no cargo a falar com sotaque?
“Sim”, disse Euzet. “Mas quanto tempo Castex precisou para ser levado a sério como político?”
Como são os sotaques franceses
A França não se orgulha de sua diversidade de sotaques da mesma forma que alguns outros países.
Houve um esforço a partir da Revolução Francesa para suprimir os idiomas regionais, como o occitano e o bretão, e, depois, os sotaques derivados delas.
As escolas foram o primeiro instrumento usado para isso, depois, a mídia de massa.
A maior família de sotaques atual é a do sul, marcada, entre outras coisas, pela pronúncia do “e” no final das palavras –normalmente mudo–, e os famosos “pang” e “vang” no lugar de pain e vin (pão e vinho em francês) .
Outros sotaques regionais podem ser encontrados na Córsega, no leste da França, na Alsácia (influenciada pelo alemão), na Bretanha e no norte, influenciados pelo dialeto local ch’ti.
Em muitas áreas rurais da França, os sotaques estão preservados entre os idosos, mas são ouvidos com menos frequência entre os jovens.
Há também o sotaque banlieue, popular entre as pessoas de origem imigrante e caracterizado por consoantes duras e fala rápida.
Um mito é que o melhor francês é falado pelo povo da região de Tours, no vale do Loire. Sob o Antigo Regime, os membros da corte mantinham castelos ao longo do Loire e trouxeram com eles o vernáculo de Paris.