Em dias não muito distantes, a vida nas cidades interioranas, assim como Guarabira, era na maioria das vezes, discutida nas praças, mercados, campos de futebol e bodegas, que sempre em tom de um democrático diálogo e gracejos, sabiam-se os fatos, mais e menos importantes do cotidiano urbano, fossem eles da esfera política, financeira, social, religiosa, ou até mesmo as fofocas domésticas.
As bodegas foram espaços de bom e leal convívio social, a começar pela credibilidade e confiança mútua entre donos, que geralmente eram também os balconistas, e seus clientes, onde a caderneta era a única forma de registro de débito, a espera do final do mês, quando todos honravam seus compromissos.
Foi por volta de 1934, um ano após a morte do meu avô paterno, Francisco Gomes da Costa, telegrafista da Great western e primeiro motorista de Guarabira – conforme registros encontrados no arquivo da Prefeitura de Guarabira – que minha avó Severina Toscano de Britto (Dona Mocinha), foi obrigada pelo destino a prover o seu sustento e dos seus três filhos, instalando na esquina da Rua Clemente Pereira n°57 com a travessa do mesmo nome, sua bodega e residência. Era bem ali, no centro de Guarabira, próximo ao Colégio das freiras e a fábrica de redes de seu José Félix. Do outro lado da rua, também na esquina, ficava a mercearia de Seu Zé Carioca, disputando o comércio de gêneros alimentícios, limpeza e miudezas daquele pedaço de cidade.
Com três portas dianteiras e uma lateral, balcão extenso, contendo duas vitrines, balança filizola com duas bandejas, um tonel de querosene, além de lenhas para fogão rústico e um bom e cheiroso rolo de fumo, assim se apresentava sua bodega, tendo na parte dos fundos a sua residência.
Cachaça de cabeça, carvão, açúcar, farinha, café em grãos, anil, sapólio, conhaque, sabão em barra, óleo, confeitos, pirulitos e muitos outros artigos eram vendidos na bodega. No balcão com dois fiteiros, um expondo em grande estilo os perfumes, banhas, giletes, agulhas, sabonetes, carretéis e batons, no outro fiteiro ficava o conforto para o estômago, oferecendo pão doce, cocadas, sequilhos, doce similar, broas e as saborosas sodas, sem faltar os alfenins.
Em uma gaveta larga sob o balcão, se misturavam em perfeita desordem o talão do Jogo do Bicho, as cadernetas para anotar os fiados, a meia faca de cortar sabão, algumas notas de 1, 2 e 5 cruzeiros, além de poucas moedas. No ar o inconfundível cheiro da mistura de aguardente, querosene e sabão, que davam um aroma único às bodegas.
Foi um período difícil, mas cheio de aprendizado. A educação dos filhos era fator preponderante, através de ações rigorosas e pautadas por muita disciplina. Todos estudavam e contribuíam nas atividades domésticas.
Minha avó, além do exercício de todas as atividades inerentes a chefe de família, dividia-se entre os cuidados da vida doméstica e a bodega, contando com o apoio do filho caçula Naldinho, um apelido carinhoso de Cleonaldo, que entre o atendimento de um cliente e outro, jogava sempre uma conversa fora e em clima bem humorado contava piadas e falava sobre política e futebol.
A bodega era sempre cheia, num vai e vem de pessoas, especialmente os funcionários da Soécia, que sempre no final das tardes, no cantinho reservado, além de registrarem suas presenças para fazer uma prosa e arriscar um palpite no jogo do bicho, tomavam suas últimas bicadas do dia.
A memória e a pesquisa me trazem os nomes de D. Joaninha e Seu Batista, seu João Quandú, Otávio Paiva, Bento Souto, Lalá e Lelé, Dona Helena Aranha, Manoel Cobra, D. Iaiá e Pedro Coveiro, Assis Bauzeiro e tantos outros, e que entre uma conversa e outra interpretavam os sonhos. “Quem joga avestruz puxa galo, pavão, águia ou perú”, dizia seu Ioiô de D. Noêmia. Irremediavelmente o tempo passa e continuará passando, levando consigo imprescindíveis valores e comportamentos humanos, assim como levou de mim a bodega de minha avó.