A União tem legitimidade para figurar no polo passivo nas demandas que tratam sobre o fornecimento de medicamentos registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas não padronizados (não disponibilizados) no Sistema Único de Saúde (SUS). O entendimento é do procurador-geral da República, Augusto Aras, em parecer enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF), nesta terça-feira (31). Além disso, Aras requer que, apesar de a União ser incluída nesse tipo de ação, sejam discutidas pelos atores do sistema de Justiça estratégias para que a federalização dos processos não prejudique o acesso à Justiça dos cidadãos hipossuficientes, que hoje também acionam a Justiça estadual para esses pleitos.
A manifestação do PGR foi no Recurso Extraordinário 1.366.243, paradigma do Tema 1.234 da Sistemática da Repercussão Geral. O tema é de grande relevância, pois poderá impactar um grande número de ações que tramitam no Judiciário brasileiro. No documento enviado ao STF, o procurador-geral também pede a remessa do caso ao Centro de Coordenação e Apoio às Demandas Estruturais e Litígios Complexos (Cadec/STF), para que sejam tomadas as providências para a completa resolução da controvérsia, notadamente para evitar impactos deletérios do entendimento a ser fixado pelo STF no acesso à Justiça, a partir da adoção de técnicas especiais de efetivação processual e de intervenções jurisdicionais diferenciadas, e com a garantia da participação de todos os envolvidos. Esse é o primeiro pedido formal desta natureza para envio de um caso ao Cadec/STF.
Na avaliação de Aras, o ponto específico em discussão diferencia-se dos demais casos envolvendo direito à saúde já julgados pela Suprema Corte. O PGR destaca que os debates sobre a legitimidade passiva dos entes federados nesse tipo de litígio ainda não se aprofundaram e que a controvérsia deve ser analisada com base nas premissas já definidas em relação à responsabilidade solidária entre os entes federados, “diante do federalismo adotado pela Constituição Federal e dos princípios organizativos do SUS”.
Nesse sentido, o procurador-geral defende que todo o arcabouço normativo que trata do fornecimento de medicamentos, como é o caso da Lei 8.080/1990 (Lei do SUS), e outras normas que abrangem a atuação direta da União devem ser aplicados. “Dessa análise, fica clara a função desempenhada pela União no âmbito do Sistema Nacional de Saúde, o que revela a necessidade de que componha o polo passivo nas demandas que pleitearem o fornecimento de medicamento não padronizado no SUS”, assinala.
Em outro ponto do parecer, Aras aponta que, diante de suposta omissão na política pública, é imprescindível a participação da União, “a fim de apresentar os fundamentos que justificam a não inclusão ou mesmo corrigir a omissão ilegal, preservando a isonomia nacional no acesso à saúde”. No entanto, o PGR pondera que a necessidade de a União compor o polo passivo de demandas que pleitearem o fornecimento de medicamento não padronizado no SUS não implica que o ente federal nele figure isoladamente. Para Aras, eventualmente, é necessário que os entes estadual e municipal também integrem o polo passivo da demanda quando tenham alguma atribuição na cadeia de fornecimento.
Isso porque, de acordo com o procurador-geral, apesar de a União ser o ente competente para introduzir novas tecnologias no sistema, por questões de capacidade logística, muitas vezes não cabe à União a dispensação de qualquer medicamento à população local. “Nessas situações, cabe ao Judiciário, quando da determinação de aquisição e fornecimento de medicamentos, atentar para a regularização do polo passivo e realizar, na medida do possível, a discriminação individualizada e sequenciada das responsabilidades dos entes envolvidos”, salienta.
Acesso à Justiça – No parecer, Augusto Aras também aponta que, ao reconhecer a legitimidade passiva da União, ocorre o deslocamento das causas para a Justiça Federal. Para o PGR, esse impacto pode implicar prejuízo aos cidadãos hipossuficientes, dada a baixa capilaridade da Defensoria Pública da União (DPU) para esse atendimento. Portanto, na avaliação do procurador-geral, esse fato indica a necessidade de todos os envolvidos buscarem soluções consensuais e negociadas para lidar com a complexidade inerente à questão em análise, já que com a transferência para a Justiça Federal as Defensorias e os Ministérios Públicos estaduais não mais prestariam ampla assistência jurídica no tema aos cidadãos que não têm como pagar advogados. Para Aras, isso representa evidente prejuízo ao direito fundamental de acesso à Justiça, dada a pequena abrangência da Defensoria Pública da União e da Justiça Federal nos municípios brasileiros.
Por essa razão, Augusto Aras entende que a melhor solução para esse desafio, inclusive com o objetivo de preservar o interesse social e garantir previsibilidade e segurança jurídica às decisões da Suprema Corte, é a submissão do caso ao recém-instituído Centro de Coordenação e Apoio às Demandas Estruturais e Litígios Complexos (Cadec/STF). Isso permitirá, com a participação ativa dos diversos atores do Sistema de Justiça, notadamente das unidades dos Ministérios Públicos e das Defensorias, bem como de representantes na área dos órgãos do Executivo e dos Tribunais de Contas, a adoção de soluções como a assinatura de acordos de cooperação, a especialização de órgãos para atender tais demandas e a exortação à modificações legislativas, para preservar os interesses dos cidadãos hipossuficientes.
Além disso, Aras sugere a seguinte tese para análise da repercussão geral: “A União tem legitimidade para figurar no polo passivo nas demandas que versarem sobre o fornecimento de medicamentos não constantes das políticas públicas instituídas, tendo em conta a sua competência para incorporar, excluir ou alterar os medicamentos, produtos e procedimentos previstos no SUS (art. 19-Q da Lei 8.080/1990)”.
Caso concreto – O recurso em análise trata do pedido de um cidadão que ajuizou ação ordinária contra o estado de Santa Catarina, pleiteando o fornecimento de um medicamento não padronizado no SUS para tratamento de sua patologia. O Juízo de primeiro grau determinou a inclusão da União no polo passivo, levando os autos para a Justiça Federal, que determinou a exclusão da União. Com o retorno dos autos à Justiça Estadual, o pedido foi julgado parcialmente procedente, o que levou o estado de Santa Catarina a recorrer da decisão sob a alegação de que a União deve figurar no polo passivo da demanda por ser a responsável financeira pelos medicamentos não padronizados no SUS.
A União, por sua vez, defende inexistir fundamento jurídico para que fosse incluída no polo passivo em demandas relativas a medicamentos registrados na Anvisa, mas não disponibilizados pelo SUS. Alega que sua legitimidade passiva estaria limitada às “ações que demandem fornecimento de medicamento sem registro na Anvisa”. Já os estados e o Distrito Federal, por meio do Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal (Conpeg), defendem que a União tem legitimidade para compor o polo passivo da relação processual em que for demandado o fornecimento de medicamento não padronizado no SUS, por ser a responsável financeira.
Ao analisar o caso concreto, o procurador-geral manifesta-se pelo provimento do recurso extraordinário, para que a União participe do polo passivo.