“Numa quinta-feira ensolarada de novembro de 2021, sai de casa para resolver problemas domésticos, tive como último compromisso visitar um amigo, que reside próximo ao cemitério central. Foi aí que resolvi fazer uma visita aos meus entes queridos, indo até o cemitério São João Batista, que fica localizado no centro da cidade de Guarabira, próximo à cadeia pública, tendo como via de acesso a Rua Almeida Barreto. Fato este nada comum ao meu comportamento cotidiano, mas fui assim mesmo.”
A saudade é a boa lembrança e assim nos motiva a percorrer os mais importantes instantes vividos, a recorrer às ideias, às pessoas e aos lugares que nos trouxeram momentos felizes.
Iniciando minha visita, enquanto subia à ladeira que dá acesso a entrada do campo- santo, sou tomado por um sentimento de lembrança ao passo em que vou identificando as residências dos moradores que nesta rua residiram ou ainda residem.
Na esquina da ladeira, logo me deparei com a emblemática casa e mercearia de José Gouveia Xavier, parecia intacta em minha memória, tendo uma porta lateral, outras duas frontais, além de uma janela basculante, que nos propiciava luz quando estávamos no reservado – local onde ficávamos discretamente – bebericando, participando e ouvindo os diálogos conduzidos por Zé Gouveia sobre a política brasileira. Era tudo com muita elegância. Zé, um antigo Os marista – aqueles que seguiam o pensamento de Osmar de Aquino – que o tempo se encarregou de torná-lo defensor do Golpe de 64, expondo as ações dos governos militares como medidas necessárias ao progresso brasileiro. Continuo minha caminhada em passos lentos, vou identificando outras residências como a do Senhor João Luís, a de Dona Quina, a do Pastor Ornilo, a de Oscar de Freitas, a de Bino do parque, entre tantas outras casas de figuras simbólicas como Natanael e Silva Xavier.
Mergulhado nas lembranças de menino, nem me dei conta que já estava diante do portal da necrópole, exibindo as esculturas de Adão e Eva, tendo abaixo a mensagem conservadora, “por tua causa reina a morte”, atribuindo a Eva submissão e culpa pelo ato de desobediência.
Agora já estou na parte interna do cemitério, em companhia dos mortos, caminhando lento, olhos atentos às lápides, aqui e ali, sendo surpreendido com a morte de alguns contemporâneos, afinal a pandemia nos privou, até mesmo, dos momentos de condolências.
Continuei a caminhada com certa dificuldade, pois era preciso algum malabarismo para trafegar entre os túmulos, uns sobre os outros, em formatos arquitetônicos diversos e cercados por enormes gradis de ferro.
Em Algum momento parei sob a sombra de frondosa árvore, poderia até imaginar que fosse uma tamarindeira, respirei e observei que outras pessoas estavam no interior do cemitério, orando e matando a saudade de um ente querido, talvez realizando sua “última quimera”.
Dei mais alguns passos e fiquei diante do jazigo de Dona Nevinha Bandeira, mulher autêntica e de forte personalidade, sempre bem vestida, cabelos curtos e brincos marcantes que ajudavam na beleza da esposa do saudoso Manoel Cobra, outra pessoa marcante em minhas memórias, homem festivo e benevolente.
As pernas já cansadas em face dos sobe e desce sinalizavam desânimo. Tudo parecia ter terminado para mim naquela breve visita aos fúnebres, quando já caminhando para o corredor central do cemitério, me deparo com uma pequena lápide contendo uma foto de Ivanoe Carvalho de Souza (1928-1997), marcada com o epitáfio “Saudades de seus familiares e amigos”.
Congelei a imagem na lápide de Ivanoe e passei a lembrar de modo acelerado dos passos e comportamentos deste homem, funcionário dos Correios de Guarabira, um profundo amante dos sonetos simbolistas, parnasianos, pré-modernistas de Augusto Carvalho Rodrigues dos Anjos, que tomava como oração um dos seus mais belos poemas, “Monólogo de uma sombra”.
“Sou uma sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras…
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva do caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!
Talvez Ivanoe se confundisse com o próprio poeta, tímido, solitário e agarrado aos aspectos místicos e religiosos dos homens, assim como Augusto. Amável criatura que após o término de seus afazeres como carteiro, guardava na memória os poemas de Augusto, para dividir conosco nos lugares de boemia, e olhando manso em nossos olhos dizia: Fale-me sobre Augusto!
Guarabira, 03.01.2022.
Por Percinaldo Toscano (professor, graduado em História)