“Venho do sertão paraibano, nasci debaixo do céu calcinante, numa terra seca e sofrida, onde pude ver na infância e na adolescência muita dor, miséria, morte e desolação. Quando a gente nasce numa terra como está, nasce buscando Deus pela fé e também arregaça as manga, ou você morre ali antes dos trinta, como diz o poema de João Cabral de Melo Neto”, define-se Elba Ramalho. Com essa força e coragem, que carrega desde menina, mas sem perder a poesia presente em cada gesto e verso, a cantora conseguiu manter sua mente e corpo sãos durante a pandemia, que a ausentou dos palcos em abril de 2020.
“A fé é nossa mola mestra. É muito importante uma pessoa viver cheia de esperança. Ter fé é saber esperar. Se não sabe esperar, se não cria essa perspectiva que o sol vai nascer no outro dia, que a escuridão vai passar, que os temores vão ser amenizados e que você vai voltar a sorrir e voltar a encontrar as pessoas que ama, você entra em desespero, como muita gente, sem essa fé sólida e enraizada que eu tenho, entrou. Minha fé me sustenta. Sem isso o sofrimento teria sido muito maior”, explica ela, que fez lives musicais, combinadas com reflexões de sua fé durante o isolamento social.
Movida pela saudade de seu público e pelo desejo de cantar com ele os sucessos que acumula nos seus mais de 40 anos de carreira, Elba sobe ao palco do Blue Note São Paulo nesta sexta-feira (11) com apresentação intimista e acústica, acompanhada por quatro músicos – Marcos Arcanjo (violão e guitarra), Rafael Meninão (sanfona), Fernando Gaby (baixo) e Anjo Caldas (percussão).
“Vivemos um recesso e algo novo, que surpreendeu a todas as pessoas, inclusive do meio artístico, um dos segmentos mais prejudicados e o que está demorando mais para ser retomado. Nós que vivemos de arte, sentimos bastante um vazio de não estar na estrada e contato com o público, que nos move, nos alimenta e nos estimula. Essa perspectiva de voltar a trabalhar e colocar o pé na estrada deixa a gente bastante feliz e cheio de sonhos e expectativas boas para que tudo volte a funcionar e para que a nossa vida siga dentro de uma possível normalidade”, conta.
No repertório, além do romantismo, que foi trilha sonora de tantas novelas, a estrela elegeu seus melhores forrós e rastapés. “Eu procuro cantar o que o povo gosta de ouvir e sei que vai animar aquela plateia. A gente vai mapeando músicas que caíram mais no gosto popular, que a gente tem a memória afetiva registrada nessas canções, seja forró, algo mais alegre ou mais romântico… A música nos conquista pela alegria, verve ou pelo coração.”
FLOR DA PARAÍBA
Em uma hora e meia de apresentação, o público ainda degusta de histórias da trajetória desta paraibana à frente de seu tempo, que aos 14 anos tocava bateria em um banda de rock formada apenas por garotas e, Coral Falado Manuel Bandeira, encenava poesias nacionais e internacionais, combinando música, dança e teatro. Nem o período em que chegou a ser colocada em um pensionato pelo pai, com o objetivo de afastá-la do teatro e da música, a fez desistir de seu sonho.
“Eu tive que me inventar desde nova. Nasci com a veia artística, meu pai era músico de orquestra e aos 14 anos eu já tocava bateria numa banda de rock, fazia teatro… Sempre estive à frente do meu tempo e isso chocou uma pouco a minha família. Meu pai tinha propósito de fazer de cada filho um doutor. Fui doutora na música. Ele teve que entender isso e quando percebeu já não conseguia me frear mais e me deu liberdade total. Falou que eu era maior de idade aos 19 anos e poderia fazer o que quisesse. Fui viver tudo o que uma adolescente tem que viver. Viver errando, quebrando a cara, mas também construindo valores que são agregados a personalidade. Sou uma pessoa por natureza forte e digo que a vida é para os fortes”, relembra.
FELICIDADE URGENTE
É com essa personalidade forte que Elba vive os 70 anos sem se importar para as pressões da sociedade, que tenta padronizar o físico e o comportamento de uma mulher na melhor idade. Ainda com os cabelos longos, que a acompanharam por quase toda sua carreira, ela se sente jovem e, sem nenhuma preocupação com a modéstia, garante que o corpo segue maravilhoso.
“Eu acho que a sociedade é hipócrita, fica sempre olhando para o jardim do vizinho e querendo colher a flor do vizinho ao invés de cuidar do seu jardim, regar a sua planta para que a sua flor nasça bonita. Eu não estou preocupada com a sociedade, estou preocupada com a minha felicidade, realizações e com o que eu sou. Me imponho muito bem neste sentido. A minha sabedoria está em saber chegar e me comportar durante o tempo em que fico com aquelas pessoas e saber me retirar. Eu me imponho bastante e me respeito muito. Antes que as pessoas digam qualquer coisa de mim, eu já me amo e me respeito. Não aceito mais pedras. Com elas, construo castelos lindos”, analisa.
“Não posso mudar o meu jeito de ser. Continuo muito jovem, com cabelão, com o corpo maravilhoso e com muita sabedoria, embora eu tenha 70 anos. Acho que a idade está me favorecendo. Claro que tem outros pontos que a gente tem que ter mais cuidados, mais precauções com a saúde, observar melhor como andam as coisas porque a idade pode nos surpreender com coisas negativas. Mas para mim tem sido tudo positivo. O envelhecimento é uma coisa que não tem como ajeitar. Ou você se conforma, aceita e considera que envelhecer é só mais sabedoria ou você vai sofrer, querer se consertar o tempo todo porque tem uma ruga a mais, caiu aqui, a musculatura já não tem a mesma força e mesmo brilho de 20 anos atrás… Não importa! Você está cheio de conhecimento, energia boa e amor para oferecer para o mundo. O canto é melhor, a voz mais bonita, você está mais feliz e sereno. Envelhecer é compreender que um lado enfraquece, mas que em compensação o espírito enobrece muito mais. Estou envelhecendo bem, apesar de saber que as pessoas querem sempre me ver jovem e tudo isso.”
Ela também não teme a morte e diz que se prepara para a passagem. “Uma hora eu vou ter que sair daqui e mudar. É como se eu dormisse aqui no meu quarto e acordasse em um jardim lindo. Me preparo todos os dias para essa passagem, para essa transição. Mas quero viver o máximo para ver meu filhos crescerem e curtir minha neta, até o último instante que Deus me conceder, o último suspiro. Que eu saia deste mundo em paz, sem nada pendente, sem dívidas moralmente e eticamente. Que minha alma seja cada vez mais transparente e que eu possa estar numa conexão profunda neste instante com meu Deus que tanto amo para poder encarar e entender a eternidade luminosa que me espera.”
CALMARIA
Essa mesma paz de espírito rege sua vida amorosa. A cantora, que já foi casada com Mauricio Mattar, com quem tem Luã Yvys, e com Gaetano Lopes, com quem adotou Maria Clara e Maria Esperança, há uma década resolveu que não queria mais “se prender” a uma pessoa.
“Eu encontrei felicidade nos meus amigos e na minha intimidade comigo mesma. Gosto da minha liberdade. Eu vi que mesmo tendo relações afetivas boas com pessoas, havia sempre cobranças, problemas e sofrimento. Quis dar um tempo mesmo. Foi uma escolha minha e gostei dessa solidão, que não é solidão porque eu tenho muitos amigos e gosto muito de curtir lugares, pessoas viagens. Posso fazer isso hoje, às vezes sem ter que carregar alguém comigo. Mas a porta nunca está fechada. A gente sempre dá uma olhadinha para ali e para acolá, uma namoradinha aqui… Mas a gente faz isso quietinho hoje para não divulgar. Não tem mais necessidade disso”, explica ela, que depois da separação adotou sua terceira filha, Maria Paula.
Em 2020, Elba se tornou avó de Esmeralda, filha de Luã com Amanda. A menina é uma das paixões a que ela dedica seu tempo livre. “Eu acho que estou sendo melhor avó que melhor mãe. Ser avó foi uma coisa maravilhosa. O exercício da maternidade segunda via foi muito bonito. Mimo minha neta. Ela é muito linda e especial. Existe de cara um enlace nesta relação de avó e neto, que vem desde o primeiro olhar e só vai amadurecendo e crescendo. É muito bonito e fico muito feliz quando estou com ela. Estando com ela, estou com meu filho Luã e com a minha nora, que é maravilhosa, a Amanda. Somos uma família, nos amamos e nos respeitamos. Amo muito meu filho e estar com ele. Quando ele aparece na minha casa, seja que hora for, me sinto muito acolhida por ele. Ele é o meu porto-seguro.”
EU E VOCÊS
Durante o isolamento social, Elba conta que descobriu outros passatempos, como a culinária. “Eu saí inventando coisas, fui para cozinha. Gosto de sobremesa e comecei a pesquisar como fazer certos doces que me atraem. Pude ler mais, ver mais séries que eu gosto, estudar mais música, me aproximar mais das minhas filhas adolescentes, que precisam tanto. Nós nos nutrimos com uma amizade mais sólida e participativa entre a gente. Teve seus pontos positivos apesar de tudo. Conseguimos nos reinventar”, conta.
A música também ajudou a unir ainda mais a família. No final de 2020, ela lançou Eu e vocês, trabalho produzido durante a quarentena ao lado de seu filho, Luã, e que conta com participações das filhas no coro.
“A gente aproveitou essa pandemia para refletir sobre tantas coisas na vida e valorizar as coisas que realmente são importantes, nos aproximarmos mais da família e manter com eles uma relação mais estreita, que talvez pela correria do dia a dia de um tempo maior a gente não consegue usufruir. Também gravei um disco, produzido com o meu filho. Botaram as minhas filhas no estúdio no coro. Ele também cantou comigo. Um disco que trouxe muitas alegrias para gente”, celebra ela sobre o trabalho, indicado ao Grammy Latino de 2021.
FRUTO
Elba tem vários projetos enquanto artista, entre eles fazer duetos com cantores e se renovar. “Quero me renovar a cada disco e continuar cantando. Amo entrar em estúdio. Tenho o sonho de cantar uma obra de Chico Buarque, talvez isso aconteça neste ano, mas ainda estamos em processo de criação”, diz ela, que já atuou em produções como A Ópera do Malandro, Morte e Vida Severina e Mandacaru e não descarta voltar a trabalhar como atriz.
“Gosto de cantar e a arte de representar está nesta parada da música, porque quem entra no palco é só a cantora, é a cantriz. Meu olhar é de atriz e minha experiência no teatro faz com que eu faça grandes espetáculos. Vou continuar subindo no palco com o conforto que a atriz me deu, usando todos os elementos da atuação na música. Se surgir alguma coisa para eu atuar, eu vou pensar com carinho.”