O Brasil já pode ter ultrapassado a marca de 220 mil mortes pelo novo coronavírus. Oficialmente, o país registrou nesta quinta-feira (24) 190 mil óbitos em decorrência da Covid-19.
Levantamento da Vital Strategies — organização global composta por especialistas e pesquisadores com atuação junto a governos — estima a omissão de quase 33 mil mortes no balanço. Esses casos entraram nas estatísticas como SRAG (síndrome respiratória aguda grave) sem uma causa específica.
No entanto, esses pacientes que foram a óbito tinham três ou mais sintomas clínicos de Covid. Com isso, mesmo que os testes dessem negativo, os casos deveriam ter sido diagnosticados como suspeitos, segundo protocolo da OMS (Organização Mundial da Saúde).
A Vital Strategies já compartilhou os dados com profissionais do Ministério da Saúde. Procurada pela reportagem, a pasta afirmou que os casos são revisados e só depois incluídos no sistema de monitoramento.
Os dados foram coletados no Sivep-Gripe (Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe), da própria pasta.
Segundo a médica epidemiologista e especialista sênior da Vital Strategies Fátima Marinho, são 242.249 mortes por SRAG neste ano, até o 14 de dezembro.
Desse total, 68.631 não tiveram a causa especificada, mas 32.923 dos pacientes registraram sintomas de Covid. Isso resultaria em potenciais 221.208 mortes em razão do novo coronavírus.
A SRAG é uma condição do paciente que pode ser causada tanto pelo novo coronavírus quanto por outros vírus respiratórios, como o H1N1, agente infeccioso da Influenza A. Ela é a principal causa de mortes de pessoas com Covid.
Para especialistas ouvidos pela reportagem, o país tem uma significativa subnotificação de mortes causadas pelo novo coronavírus.
Marinho, da Vital Strategies, disse que os sintomas mais comuns encontrados nos casos analisados foram dispneia (falta de ar), tosse e saturação do oxigênio menor do que 95%.
Essas são, inclusive, os principais sintomas verificados em pacientes que morreram de SRAG causada pela Covid-19 no país, diz a epidemiologista.
A especialista criticou os procedimentos de investigação e notificação do Ministério da Saúde definidos para municípios.
“Se já tem uma epidemia no país, não tem motivo para requerer o histórico epidemiológico da pessoa [contato com alguém com Covid ou viagem para áreas afetadas]. Esses cidadãos morreram em plena pandemia e no pico das mortes. Não tem por que não classificar ao menos como suspeitas”, disse.
No Brasil, o Ministério da Saúde permite que casos sejam confirmados e notificados também por diagnóstico clínico, ou seja, por análise do médico feita com base em sintomas e histórico do paciente.
Ao todo, são cinco critérios aceitos para confirmação de casos: laboratorial; clínico-epidemiológico; por imagem; clínico; laboratorial em indivíduo assintomático, como profissionais de saúde e outros grupos mais expostos ao risco de infecção.
Responsável pelo levantamento, Marinho diz que pesquisa da Vital Strategies em parceria com a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) buscou provar que há casos de Covid-19 nos dados de SRAG não especificados. Para isso, um estudo, ainda não divulgado, foi realizado em três municípios brasileiros.
De 2.000 mortes avaliadas de pacientes com três sintomas ou mais da nova doença e resultado negativo para o coronavírus, 90% foram confirmados como Covid após realização de necropsia.
“Queríamos mostrar que a maioria desses casos é Covid-19. São pessoas que correspondem aos critérios clínicos, não têm histórico epidemiológico, mas moram em área com muitos casos”, afirmou Marinho.
Para ela, a base de dados do Ministério da Saúde mostra que é preciso investigar mais os casos. Marinho já se reuniu com servidores da área epidemiológica da pasta para tratar do assunto.
Na avaliação da especialista, ainda falta no Brasil uma coordenação por parte do Ministério da Saúde.
“A gente precisa ter um critério que defina casos de Covid-19. Com certeza a gente não está identificando todos os casos de morte pela doença nem todos os casos. Há mortes de pacientes por Covid-19 em casos não especificados, isso não tenho nenhuma dúvida. Temos ao menos 20% a mais de mortes do que está sendo divulgado hoje”, disse.
Marinho citou a Colômbia como exemplo de notificação. Segundo ela, o país sul-americano tem usado critérios clínicos para mortes com características de Covid mesmo com testes negativos, inconclusivos ou que não tenham sido realizados (caso o paciente tenha tido contato com infectados).
O coordenador do InfoGripe e pesquisador em saúde pública da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), Marcelo Gomes, compartilha da visão de Marinho de que há mortes por Covid-19 nos casos classificados como não especificado.
Segundo ele, muitos casos não são detectados em testes por diversos motivos, como tempo de início dos sintomas até a realização do teste, qualidade e tipo da coleta realizada, armazenamento e transporte até a chegada ao laboratório.
De acordo com Gomes, das mortes por SRAG no país com identificação do vírus, 99% têm relação com o Sars-Cov2, isso sugere que nos casos não identificados, boa parte seja Covid-19.
“A gente não consegue precisar exatamente quantos casos que testaram negativo e entraram nessa estatística são Covid-19, mas podemos dizer que uma grande parte está associada à doença”, afirmou.
José David Urbaez, consultor da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), disse que os profissionais de saúde têm trabalhado com mortes de SRAG não específico como casos de Covid-19. Isso porque a maioria dos óbitos pela síndrome respiratória tem relação com o novo coronavírus.
“A quantidade de SRAG no Brasil é assustadora. Nós nunca tivemos um momento calmo durante a pandemia, saímos do patamar muito intenso, para o intenso. Agora, estamos voltando novamente para o antigo patamar”, disse.
Ministério diz que já investigou e inseriu dados em sistema O Ministério da Saúde afirmou, em nota, que os casos de SRAG sem causa determinada já foram investigados. A pasta disse que os dados foram inseridos no Sivep-Gripe (Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe).
“A diferença observada entre as notificações de casos de SRAG de 2020 para anos anteriores e suas respectivas classificações finais são esperadas e corretas, pois a rede de vigilância da Influenza e outros vírus respiratórios está mais sensível na captação/notificação de casos por causa da pandemia da Covid-19”, afirmou o ministério.
De acordo com a pasta, casos e óbitos de SRAG não especificados são observados rotineiramente na rede de vigilância da Influenza e de outros vírus respiratórios.
O ministério afirmou que esses casos não foram identificados por causa da qualidade na coleta, demora no envio da amostra, resultado negativo de teste ou não detectável para os vírus respiratórios pesquisados. Segundo a pasta, todos esses fatores são esperados nos resultados do diagnóstico laboratorial.
A pasta disse ainda que os sistemas de informação que estão sendo usados para os registros dos casos são online, nas três esferas de governo. Portanto, não há falta de coordenação nacional no que se refere às notificações de casos e óbitos.
“É necessário compreender que não é somente notificar e registrar o caso, pois, mesmo depois de inserido no sistema, os técnicos revêem os dados para atualizar as informações, bem como resultados laboratoriais”, afirmou.
FOLHAPRESS