Já se passaram mais de cinquenta anos e eu nunca me esqueço das histórias engraçadas, outras cavernosas, e até mesmo, melancólicas, contadas por pessoas das mais distintas gerações sobre o Beco de Candeia. Localizado no centro da cidade de Guarabira, o beco é uma anomalia da cidade antiga, resultante da ausência de planejamento urbano dos anos trinta, que nem mesmo o cuidadoso prefeito Sabiniano Maia conseguiu corrigir durante seus períodos administrativos.
O Beco de Candeia muito serviu nas décadas de trinta, quarenta e cinquenta, quando fazia escoar todas as cargas, oriundas de outros centros comerciais, em especial das capitais de Pernambuco e Rio Grande do Norte, chegadas aqui através da rede ferroviária da Great Western, com o objetivo de abastecer o vigoroso comércio local. Alguns memorialistas contam que foram nas carrocerias dos caminhões dos Senhores Severino Ipiranga, Seu Borba e Vicente Bezerra que eram transportadas as mercadorias, partindo do pátio da estação ferroviária até os depósitos dos estabelecimentos comerciais da cidade Rainha.
Dono de sua própria identidade, o beco sempre foi plural, singelo e cúmplice no propósito de servir ao seu gentil. Desprovido dos olhares administrativos ao longo das décadas, sempre foi útil às questões do trânsito da cidade, até os dias atuais, além de presenciar as coisas cíclicas da vida interiorana. Ali, crianças e adolescentes, jogavam bola de gude ou bila, piões de cordão – artesanalmente feito por seu Cardoso – Jogo de finca e amarelinha, além da prática indispensável do futebol. Serviu, até mesmo, para amparar homens e mulheres, crianças e adultos, nos inesperados momentos de desarranjos intestinais, principalmente nos períodos da Festa da Luz.
Não me foge da memória, os desenhos feitos a mãos livres com pedras de carvão pelos filhos artistas de Sr. João Cosmo de Farias – Seu Dudu do Carvão -, que ali se instalara com uma carvoaria, por quase vinte anos, para o abastecimento dos fogões das redondezas. Ficou marcado em mim como se fosse tatuagem um belo desenho retratando um nativo seiscentista feito a carvão, aplicado sobre a parede irregular da carvoaria de Seu Dudú.
Não posso de forma alguma deixar de evocar neste instante parte dos coadjuvantes desta história como: Seu Zezé e seus filhos, o carnavalesco Anísio Paixão, o comerciante Lídio Alves e Dona Neuza, o artesão Geraldo Pereira, Joca Benedito, Sr. João Barbeiro, Pedro Bauzeiro, Sr. Júlio Funileiro, professora Estelita Cunha e seu esposo, promotor de justiça Waldemar Farias, Jurandir de D. Mocinha e tantos outros que vivenciaram as coisas cotidianas passadas nesta importante e poética artéria.
Até hoje, o beco guarda características do passado, curvo e estreito, ligando as ruas Osório de Aquino com a Praça Antônio Guedes, continuando assim o seu destino, servindo aos pedestres que por ali trafegam.
Resta-me contar um fato memorável narrado pelo meu pai Nadinho Toscano. Foi pisando em solo do Beco de Candeia, ora seco, ora úmido, que o emblemático Circo Nerino, um dos maiores do Brasil nas décadas de 40 e 50, chega a nossa querida terra Guarabira, onde aqui realizou belíssimos espetáculos.
Trazendo a tona estas memórias, apenas um fato me entristece: não saber com precisão quem foi Candeia. Era esse seu sobrenome?! E seu nome? Venho ao longo do tempo recorrendo à história oral na tentativa de saber algo mais sobre Ser. Candeia. Será que emprestou seu nome ao beco? Sei que era um homem simples, anônimo e pacífico.
Nas memórias que obtive sobre Candeia, todos afirmam que o velho homem morou no beco por muitos anos, transformando este lugar em tão memorável espaço lúdico, criativo e recreativo, que nos fez perder, tantas vezes, as horas da escola e do retorno para casa, permitindo que o seu jardim (o beco) pudesse tornar felizes as crianças cotidianamente presentes. Era um homem magro, usava camisa sempre aberta ao peito, barba por fazer e tinha como trabalho consertar bicicletas usadas, recuperá-las e colocá-las para o aluguel. Talvez tenha sido nossa primeira locadora de bicicletas.
Outros contam que o nome Candeia deve-se ao fato de que, sempre ao escurecer da tarde, caminhava solitário pelo beco, onde deixava as marcas dos seus pés magros naquele solo cinzento, conduzindo preso aos dedos, um candeeiro (lamparina) para guiar seus próprios passos na escuridão reinante, ao tempo em que fumava seu cigarro de palha, escrevendo através da fumaça, no céu negro, seu poema de felicidade.
Não sabemos, infelizmente, ate hoje, como foram seus últimos dias. Partiu sorrateiramente, talvez numa noite de luar, intensamente prateada.
(*) Por Percinaldo Toscano
- Graduado em História/Professor/Pesquisador