A Defensoria Pública da Bolívia confirmou na segunda-feira (8) que a menina de 11 anos que engravidou devido aos contínuos abusos sexuais cometidos pelo pai de seu padrasto interrompeu a gestação.
“A menor assumiu uma definição, junto com a sua mãe, no âmbito do resguardo de seu direito à vida e seu direito à integridade”, declarou a defensora pública Nadia Cruz em entrevista coletiva sobre o caso, que aconteceu em Yapacaní, departamento de Santa Cruz, no leste da Bolívia.
Grupos opositores ao aborto se manifestaram em cidades como Santa Cruz e La Paz — Foto: EPA/Via BBC
O episódio gerou uma polêmica nacional nas últimas semanas, tendo a Igreja Católica no centro da discussão.
“A menor tem direito à confidencialidade, tem direito de continuar com sua vida, depois de toda invasão da Igreja e da permissividade das instituições públicas”, completou.
Por mais de nove meses, a menina foi vítima de abuso sexual cometido pelo pai do atual companheiro de sua mãe.
A gravidez foi descoberta quando a menina disse à família que sentia “movimentos estranhos” na barriga. Exames médicos determinaram que, na ocasião, ela estava com 21 semanas de gestação.
Uma tia da menor apresentou queixa contra o suposto agressor, detido em prisão de segurança máxima.
Ao mesmo tempo, foi apresentado um pedido de interrupção legal da gravidez (ILE, na sigla em espanhol) para a menina.
Quando o caso se tornou público, começou um acalorado debate entre a Igreja Católica e grupos pró-vida e as entidades de proteção de menores que defendiam o direito constitucional da menina de abortar.
Mulher protesta em hospital boliviano a favor do direito das mulheres de decidirem sobre aborto — Foto: EPA/Via BBC
O aborto é legal na Bolívia?
Na Bolívia, uma decisão constitucional de 2014 determinou que a mulher pode ter acesso ao aborto legal e seguro nos casos em que a gravidez é fruto de estupro, incesto, estupro de menor de idade, ou se a gravidez coloca em risco a vida ou saúde da mãe.
É necessário fazer a denúncia de estupro e ter o consentimento da vítima, eliminando a exigência de autorização judicial que consta no Código Penal Boliviano para a realização de um aborto sem que haja punição.
No entanto, quando a polêmica sobre o caso veio à tona algumas semanas atrás, a cobertura da imprensa e a pressão de grupos antiaborto fizeram a menina e sua mãe desistirem de continuar com a interrupção da gravidez, conforme contou a defensora Nadia Cruz à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.
Mulher protesta em favor do direito de decidir sobre gravidez na Bolívia — Foto: Getty Images/Via BBC
Foi assim que a menina recebeu alta do hospital onde se encontrava e foi transferida para um centro de acolhimento da Igreja Católica, instituição que se comprometeu a cuidar da menor e do seu filho ainda não nascido.
No entanto, Cruz explicou à imprensa que o Tribunal de Garantias ordenou a formação de uma equipe técnica para assegurar sua saúde física e mental.
“Podemos apontar que a equipe técnico-científica multidisciplinar assumiu a proteção do menor. Na tarde de sábado, a menina estava bem de saúde. Psicologicamente ela ainda deve ser acompanhada”, afirmou.
“A decisão que tomaram não deveria ser pública porque afeta o futuro da menor e todos os julgamentos que existiram em torno da menina”, enfatizou Cruz.
Processo penal contra a Igreja Católica
Em 27 de outubro, a Defensoria Pública anunciou que seu escritório havia entrado com vários processos penais contra aqueles que exerceram pressão indevida contra a decisão da menina.
“Estamos entrando com uma ação penal contra as defensorias de crianças e adolescentes de Yapacaní e Santa Cruz, a equipe médica e de enfermagem do Hospital Percy Boland, a ONG e o Arcebispado de Santa Cruz que intervieram, e também contra a mãe, pelos delitos, no que corresponda, de violação de deveres, desobediência às resoluções constitucionais e tráfico de pessoas”, afirmou Cruz na ocasião.
E acrescentou que com a ação o objetivo é que os responsáveis sejam punidos com penas de 15 a 20 anos de prisão, “pois a vítima é menor de idade”.
Na segunda-feira, Cruz disse que o Tribunal de Garantias pediu à promotoria que informe a cada 5 dias “sobre o andamento e investigação dos atos ilícitos de ingerência da Igreja Católica”.
Segundo ela, “depois da primeira decisão que a menor tomou para interromper a gravidez houve uma junta médica”, que não foi solicitada por ninguém e da qual a Igreja participou inexplicavelmente.
“Sim, tem havido pressão por parte da Igreja e pressão desse tipo de grupo.”
“Esta comissão teria definido, sem consultar a mãe nem a menor, a suspensão dessa intervenção, inclusive tendo usado um medicamento para tal suspensão que colocava em risco iminente a vida da menor”, disse Cruz na coletiva de imprensa.
Ela afirmou ainda que a promotoria já possui as provas apresentadas pela defensoria da ingerência ilegal neste caso.
Segundo dados da Casa da Mulher divulgados pela agência de notícias EFE, em 2020 ocorreram 39.999 gestações de menores de 18 anos na Bolívia, o que significa que 104 meninas engravidaram por dia no país, das quais seis são menores de 13 anos.