Percinaldo Toscano
Professor/cronista.
Outro dia, escrevi uma poesia extraída de lembranças da juventude, quando residia na Rua do Tambor – hoje Marechal Deodoro da Fonseca – lá pelos meus 17 anos, que cheio de energia jogava futebol, brincava de patinete, jogo de botão, carro de lata feito artesanalmente com latas de óleo Mazzola e pneus com sobras de sandálias Havaianas usadas. As calçadas se tornavam pequenas diante de tantos meninos e meninas. Cadeiras posicionadas nas calçadas abrigavam pais e mães dialogando sobre o cotidiano. Ali estavam Dona Ednalva, Dona Lourdinha Costa, professora Severina Rodrigues, Porcina, minha mãe Percília e tantas outras.
Contudo, o motivo que me trouxe a escrever o poema “Maria Chica”, que faz referência a uma mulher negra, de olhos verdes, residente a poucas casas abaixo da minha, descendo a ladeira – Por que as ladeiras são tão poéticas? – talvez tenha sido em face dos primeiros conceitos sobre etnia, mestiçagem, escravidão ou outras coisas ditas pela professora italiana giuseppina – durante as aulas de sociologia – que por Guarabira lecionou nos anos finais da década de 70.
Maria Chica exibia corpo alto e magro, sempre se apresentava mergulhada em seu vestido longo de chita, exercendo ao final das tardes seu compromisso doméstico, varrendo sua calçada e seu terreiro coberto de seixos e barro vermelho. Em forma de ritual, se debruçava na janela a dar suas tragadas cotidianas em seu cachimbo, ao tempo em que saudava os que por ali passavam. Um bom dia, uma boa tarde, como vai sua família? Expressava-se com fala de cumplicidade – sem rancores do passado – com os moradores da rua e da pequena cidade. Se não fora mera coincidência, diria que teria lido Rubem Braga, quando descreve a beleza de ver o mundo (o mar) pela janela, onde tudo se torna mais belo e palpável aos olhos. Postada e enquadrada pela moldura simples de sua janela, Maria chica esbanjava fidalguia, em educação e simplicidade, era sem sombra de dúvidas nossa rainha. A Rainha do Tambor!
Distante dali, estudando ciências sociais, mergulhado nas teorias sociológicas baseada no materialismo histórico e dialético, buscando explicações para as relações entre os homens explorados e exploradores, é que passei a entender os porquês da descendente escrava, quanto ao seu comportamento diante aos abusos dos jovens meninos, passando em sua calçada com patinetes, jogando futebol próximo a sua casa, empinando pipas, entre outras brincadeiras e travessuras, roubando-lhe a paciência e o direito ao sossego.
Em busca do seu direito líquido e certo de cidadã, Maria Chica bradava, prometia fazer reclamação aos nossos pais, até ao delegado, se necessário fosse.
Da mulher negra que encheu de curiosidades toda minha infância, até os dias de sua morte, guardei o aprendizado de que, nem a condição econômica, social, política ou religiosa, será imperatória diante do relacionamento entre as pessoas. Ninguém é mais, ninguém é menos!
Oriundo das minhas reminiscências, em homenagem e reconhecimento a brava mulher guarabirense Maria Chica, escrevi um poema assim:
Na ruazinha da minha infância
tinha uma mulher negra bonita, descendente.
Seu nome! Ainda não sei,
atendia por Maria Chica.
Solitária e solidária,
usufruía o passado como diálogo,
em tempo presente.
Em meio a fumaça azul do seu cachimbo,
Narrava histórias dos tempos sombrios.
Amável e fraterna
Pendurava na meia parede da sala,
Fotos em preto e branco.
Na memória,
belos versos de menina.
Guarabira, 21/09/2024