No final da tarde do dia 2 de abril em Guarulhos (SP), um grupo de policiais federais aguardava ansiosamente a chegada do passageiro sentado na poltrona 62K do voo KLM 0791, vindo diretamente da Holanda.
Horas antes, autoridades holandesas já haviam feito o alerta: um homem suspeito de ser espião russo usando identidade brasileira havia acabado de tentar, sem sucesso, entrar no país europeu, foi barrado em Amsterdã e estava sendo devolvido ao Brasil.
No desembarque, os agentes da PF se depararam com o homem que tentava convencê-los, apesar do forte sotaque estrangeiro, de que era brasileiro e de que não sabia o motivo de sua prisão.
O homem preso pela PF dizia se chamar Victor Müller Ferreira. Autoridades holandesas, brasileiras e russas, no entanto, dizem que seu verdadeiro nome é Sergey Vladimirovich Cherkasov. Ele nega ser o espião apontado pelos holandeses. O governo russo se manteve em silêncio.
Cherkasov já mobilizou investigadores do Brasil, Holanda e Estados Unidos. As informações divulgadas até o momento apontam que Cherkasov é suspeito de pertencer a um tipo especial de espião conhecido como “ilegal”. São homens e mulheres normalmente recrutados ainda jovens pelos órgãos de inteligência russos que recebem identidades falsas e são enviados a diferentes países para espionar e coletar informações de interesse do governo de Moscou. Eles são vistos como espiões de elite. Um tipo de versão russa de James Bond.
Em junho, porém, ele foi condenado, em primeira instância, a 15 anos de prisão pela Justiça Federal por uso de documentos brasileiros falsos. Está preso em uma cela da Superintendência da Polícia Federal em São Paulo.
Mas o que parecia ser o fim da linha para um suposto espião pego em meio a uma missão pode acabar se transformando em uma pequena pausa. Documentos obtidos com exclusividade pela BBC News Brasil de processos que tramitam no Brasil contra Cherkasov mostram que o governo russo articula uma operação diplomática e jurídica para recuperar a custódia do homem que supostamente seria agente de inteligência a serviço de Moscou.
Foto de arquivo de 7 de novembro de 2019 mostra sede do Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia, na Holanda — Foto: Peter Dejong/AP
O mais recente movimento aconteceu em agosto, quando a Embaixada da Rússia no Brasil pediu a extradição de Cherkasov ao Supremo Tribunal Federal (STF). A existência do pedido foi confirmada pelo Supremo à BBC News Brasil.
Pela legislação brasileira, o pedido de extradição precisa ser julgado pelo STF. Como o caso está sob a relatoria do ministro Edson Fachin, o processo deverá ser apreciado pela Segunda Turma do Supremo, da qual ele faz parte.
Se o STF aprovar a extradição, caberá ao presidente da República autorizar ou não a liberação. Jair Bolsonaro (PL) ficará no cargo até o final deste ano. No dia 1º de janeiro de 2023, o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), assumirá a presidência. Se o STF negar o pedido, não caberá decisão do presidente sobre o caso.
Na quarta-feira (9), a operação russa para levar Cherkasov de volta ao seu país natal ganhou o apoio oficial dele próprio. Em uma audiência sobre o processo de extradição que tramita no STF, o homem suspeito de ser um espião a serviço de Moscou declarou seu desejo de ser extraditado para a Rússia “o mais rápido possível”.
“Eu gostaria de reiterar que eu quero ser extraditado para a Rússia e eu concordo com as acusações que a Rússia fez e pretendo responder aos fatos e meus crimes que são alegados pela Rússia no meu Estado quanto mais rápido possível”, disse Cherskasov às autoridades brasileiras.
A declaração está em um vídeo obtido pela BBC News Brasil e que faz parte do processo de extradição.
A declaração chama atenção porque, na Rússia, as penas pelos crimes de tráfico de drogas e associação criminosa aos quais ele está sujeito são mais rigorosas que a pena que ele cumpre no Brasil. Na Rússia, ele pode ser condenado a até 20 anos de cadeia. No Brasil, ele foi sentenciado a 15 anos de prisão. Pela legislação brasileira, no entanto, Cherkasov poderia ir para o regime semi-aberto em dois anos e meio.
A BBC News Brasil questionou os advogados de Cherkasov sobre sua declaração, mas não obteve resposta.
Do lado brasileiro, quem investiga o caso é a Polícia Federal. Ainda não se sabe se ele usava o Brasil apenas como uma fachada para manter sua identidade falsa ou se ele também espionava o país. Apesar disso, a PF surpreendeu pessoas familiarizadas com o caso ao pedir à Justiça Federal para destruir documentos encontrados durante as investigações sobre o russo no Brasil – o pedido foi negado pela Justiça (leia mais abaixo).
A destruição dos documentos, segundo fontes ouvidas pela reportagem, poderia dificultar a elucidação das atividades desenvolvidas pelo suspeito em território brasileiro.
Procurados, a Embaixada da Rússia, a defesa de Cherkasov, a Polícia Federal, o Supremo Tribunal Federal, a Procuradoria-Geral da República (PGR) e os ministérios da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e o Ministério das Relações Exteriores (MRE) não comentaram o caso.