O adolescente Marcus Vin\u00edcius da Silva, de 14 anos, morreu com um tiro nas costas quando voltava da escola. No mesmo momento acontecia a Opera\u00e7\u00e3o Vingan\u00e7a da Pol\u00edcia Civil, no Complexo da Mar\u00e9, no Rio de Janeiro. Outras seis pessoas foram mortas e duas crian\u00e7as ficaram feridas. A m\u00e3e dele, Bruna, carrega atualmente a blusa do uniforme escolar, manchada de sangue, que o menino usava no dia do assassinato. Agora \u00e9 o s\u00edmbolo da luta dela por justi\u00e7a.<\/p>\n
Bruna da Silva deu um depoimento emocionante nesta quinta-feira (12), na Comiss\u00e3o de Direitos Humanos e Minorias da C\u00e2mara dos Deputados. A Comiss\u00e3o \u00e9 presidida pelo deputado Luiz Couto (PT-PB). Entre os trechos do depoimento esteve a letra da m\u00fasica \u201cPeda\u00e7o de mim\u201d, de Chico Buarque de Holanda, lan\u00e7ada em 1978.<\/p>\n
A hist\u00f3ria de Marcus Vin\u00edcius contada pela m\u00e3e come\u00e7ou \u00e0s 7 e meia da manh\u00e3 do dia 20 de junho, uma quarta-feira.<\/p>\n
Bruna<\/strong><\/p>\n \u201cNo dia 20 de junho, meu filho acordou atrasado. Ele sempre me pedia para colocar pra despertar o telefone \u00e0s 7 da manh\u00e3. Nesse dia coloquei \u00e0s 7 e meia e at\u00e9 levei um esporro dele\u201d.<\/p>\n Marcus<\/strong><\/p>\n \u201cPuxa, minha m\u00e3e, a senhora sabe que \u00e9 meu hor\u00e1rio \u00e9 7 horas.. e bota pra despertar 7 e meia?\u201d<\/p>\n Bruna<\/strong><\/p>\n \u201cAi, meu filho, desculpa. A\u00ed ele foi se arrumar pra ir pra escola. Quando se arrumou foi l\u00e1 no quarto, que eu ainda tava sonolenta\u2026ele bateu\u2026 eu ia trabalhar tamb\u00e9m, s\u00f3 ele sa\u00eda primeiro que eu\u201d.<\/p>\n Marcus<\/strong><\/p>\n \u201cM\u00e3e, t\u00f4 indo embora, t\u00f4 indo pra escola\u201d.<\/p>\n Bruna<\/strong><\/p>\n \u201cMeu filho, que horas s\u00e3o a\u00ed no teu celular?\u201d<\/p>\n Marcus<\/strong><\/p>\n \u201cOito horas\u201d.<\/p>\n Bruna<\/strong><\/p>\n \u201cMas meu amor, n\u00e3o vai dar tempo. A tua escola \u00e9 um pouco longe e at\u00e9 e voc\u00ea ir andando vai chegar atrasado\u201d.<\/p>\n Marcus<\/strong><\/p>\n \u201cN\u00e3o, m\u00e3e, vai dar tempo sim. Vou passar na casa do meu amigo, chamar ele e vamos juntos que nem todo dia\u201d.<\/p>\n Bruna<\/strong><\/p>\n \u201cN\u00e3o vai dar tempo\u201d.<\/p>\n Marcus<\/strong><\/p>\n \u201cVai dar tempo sim\u201d.<\/p>\n Bruna<\/strong><\/p>\n \u201cMe pediu a ben\u00e7\u00e3o, aben\u00e7oei e ele foi. Chegando na casa do amigo dele, o amigo ainda estava dormindo.\u00a0 A toler\u00e2ncia da escola \u00e9 at\u00e9 8 e quinze. At\u00e9 o amigo botar o uniforme e eles caminharem para escola, j\u00e1 tinha estourado o hor\u00e1rio, j\u00e1 tinha dado 8 e quinze. O que fizeram? O amigo voltou pra tirar a roupa e sa\u00edram\u201d.<\/p>\n Amigo<\/strong><\/p>\n \u201cMarcus, agora vou te levar pra voc\u00ea tirar a sua roupa. Voc\u00ea t\u00e1 sozinho em casa?\u201d<\/p>\n Marcus<\/strong><\/p>\n \u201cP\u00f4, eu acho que eu t\u00f4. A minha m\u00e3e j\u00e1 deve ter sa\u00eddo pra trabalhar\u201d.<\/p>\n Bruna<\/strong><\/p>\n \u201cS\u00f3 que n\u00e3o, eu estava me arrumando. Nesse caminho que eles vieram fazendo\u2026viram o blindado e meu filho, o meu filho, pediu pra voltar, n\u00e3o passar pelo blindado.\u00a0 Porque quando o blindado vai na nossa comunidade ele d\u00e1 tiro na gente, sim. A gente \u00e9 sobrevivente do Estado l\u00e1, sim. Meu filho morreu na rua que eu moro\u201d.<\/p>\n Marcus<\/strong><\/p>\n \u201cM\u00e3e, o blindado me deu um tiro. Eles n\u00e3o viram que eu estava de uniforme de escola? \u201c<\/p>\n Oh, peda\u00e7o de mim<\/p>\n Oh, metade afastada de mim<\/p>\n Leva o teu olhar<\/p>\n Que a saudade \u00e9 o pior tormento<\/p>\n \u00c9 pior do que o esquecimento<\/p>\n \u00c9 pior do que se entrevar<\/p>\n Quinta-feira, 11 de julho, Bruna<\/strong><\/p>\n \u201cN\u00e3o estou destilando raiva ou \u00f3dio da pol\u00edcia. Pol\u00edcia tem que ser levada \u00e0 s\u00e9rio. Mas tem que trabalhar com sucesso, com \u00eaxito. Foram na imprensa falar que a opera\u00e7\u00e3o na Mar\u00e9 foi um sucesso. N\u00e3o foi um sucesso. Sucesso que derrama o sangue de um inocente? Com material de escola dentro da mochila? Apostila \u00e9 um fuzil? \u00c0s vezes me sinto culpada porque cobrava estudo do meu filho\u201d.<\/p>\n \u201cFizeram fake news, colagem com fotos, que meu filho era do tr\u00e1fico. N\u00e3o pari traficante. Sou um tipo de m\u00e3e que olha as redes sociais dos meus filhos. Criei meu filho na comunidade at\u00e9 os 14 anos sem tomar um tiro. O Estado entra e mata? Nesse dia 20, o Estado entrou j\u00e1 dando tiro. O nome da opera\u00e7\u00e3o era Opera\u00e7\u00e3o Vingan\u00e7a. Foram vingar a morte de um delgado l\u00e1 de Acari. Eu n\u00e3o sou do Acari, sou do Complexo da Mar\u00e9\u201d.<\/p>\n \u201c\u00c9 muito triste chegar em casa e n\u00e3o ter mais alegria. Meu filho era o que brincava, fazia piada. Ele estava estudando\u2026ele estava no lugar certo, na hora certa\u201d.<\/p>\n Oh, peda\u00e7o de mim<\/p>\n Oh, metade exilada de mim<\/p>\n Leva os teus sinais<\/p>\n Que a saudade d\u00f3i como um barco<\/p>\n Que aos poucos descreve um arco<\/p>\n E evita atracar no cais<\/p>\n \u201cNessa mesma opera\u00e7\u00e3o j\u00e1 tinham matado 6 pessoas dentro de uma quitinete. O Estado se vingou no sangue dos seis e na alma de um inocente com roupa de escola\u201d.<\/p>\n \u201cQuando tem opera\u00e7\u00e3o na Mar\u00e9, o primeiro tiro sempre vem da pol\u00edcia, os traficantes revidam e a gente fica no meio. \u00c9 uma chuva de bala. Fica todo mundo doido, e m\u00e3e correndo para pegar os filhos na escola\u201d.<\/p>\n \u201cEu trabalhei no lix\u00e3o do Caju pra reciclar lixo e levar dinheiro pra casa. Isso nunca me fez mal. Eu suei e o pai suou. A gente ralou mas deu jeito. Nunca pensei na vida que o Estado ia matar meu filho. S\u00f3 na rua que meu filho foi assassinado tinha um rastro de 51 tiros. O blindado dando tiro na terra, o helic\u00f3ptero dando tiro de cima. Ficaram 200 marcas de tiros no Complexo, s\u00f3 do blindado a\u00e9reo\u201d.<\/p>\n \u201cOs nossos mortos t\u00eam voz e nossas filhos t\u00eam m\u00e3es. Calaram meu filho, mas n\u00e3o calaram a m\u00e3e dele\u201d.<\/p>\n Oh, peda\u00e7o de mim<\/p>\n Oh, metade arrancada de mim<\/p>\n Leva o vulto teu<\/p>\n Que a saudade \u00e9 o rev\u00e9s de um parto<\/p>\n A saudade \u00e9 arrumar o quarto<\/p>\n Do filho que j\u00e1 morreu<\/p>\n \u201cQuem socorreu meu filho foi o amigo dele. A ambul\u00e2ncia demorou pra chegar e levar para a UPA. Ele tomou quatro bolsas de sangue em menos de duas horas. Perdeu ba\u00e7o, um rim e parte do est\u00f4mago. A bala destruiu meu filho por dentro\u201d.<\/p>\n \u201cA press\u00e3o dele subia e descia. Eu falava no ouvido dele\u2026reage\u2026voc\u00ea n\u00e3o queria fazer reflexo no cabelo? Reage para fazer o reflexo. Meu filho est\u00e1 morto. A l\u00f3gica da vida \u00e9 os filhos enterrarem os pais e n\u00e3o o contr\u00e1rio\u201d.<\/p>\n \u201cDeus deve estar levando os bons pra junto dele. Os ruins est\u00e3o ficando. E n\u00e3o foi s\u00f3 o Marcus. Teve a Maria Eduarda, com 4 tiros e o Geremias, tamb\u00e9m com tiro nas costas. Crian\u00e7as mortas na comunidade em opera\u00e7\u00f5es da pol\u00edcia\u201d.<\/p>\n \u201cMarcus Vinicius hoje e sempre. Ele est\u00e1 com a Marielle. Ela toma conta dele l\u00e1 em cima e eu toma conta da filha dela aqui\u201d.<\/p>\n Oh, peda\u00e7o de mim<\/p>\n Oh, metade amputada de mim<\/p>\n Leva o que h\u00e1 de ti<\/p>\n Que a saudade d\u00f3i latejada<\/p>\n \u00c9 assim como uma fisgada<\/p>\n No membro que j\u00e1 perdi<\/p>\n \u201cFoi a interven\u00e7\u00e3o militar que matou meu filho. E eu n\u00e3o vou parar. A opera\u00e7\u00e3o policial n\u00e3o foi um sucesso, foi como o Rio de Janeiro, falida. Deram um tiro no pr\u00f3prio p\u00e9\u201d.<\/p>\n \u201cN\u00e3o tive luto, eu fui pra luta. Meu kit de luta, \u00e9 a mochila e a camiseta manchados de sangue. Se eu era o bra\u00e7o forte dele na cria\u00e7\u00e3o, agora vou ser o bra\u00e7o forte em busca de justi\u00e7a.<\/p>\n \u201cQuero agilidade no processo. Aqui n\u00e3o \u00e9 lugar de democracia? Ent\u00e3o pe\u00e7o a ajuda de voc\u00eas. Meu filho j\u00e1 me levou pra S\u00e3o Paulo e hoje estou em Bras\u00edlia\u201d.<\/p>\n \u201cFor\u00e7a eu tenho. Sou guerreira pra caramba. Sou ariana e meu nome \u00e9 Bruna da Silva. Hoje, a irm\u00e3 do Marcus olha para o c\u00e9u e fala\u2026 olha a estrela Vini. O luto eu vivo em casa. Na rua eu vou \u00e0 luta\u201d<\/p>\n Oh, peda\u00e7o de mim<\/p>\n Oh, metade adorada de mim<\/p>\n Lava os olhos meus<\/p>\n Que a saudade \u00e9 o pior castigo<\/p>\n E eu n\u00e3o quero levar comigo<\/p>\n A mortalha do amor<\/p>\n Adeus<\/p>\n Confira o v\u00eddeo do depoimento<\/p>\n